Por que as áreas de Treinamento e Desenvolvimento precisam mudar? (parte 1)

Nira Bessler
6 min readAug 1, 2022

Dores

Há algumas dores comuns em relação às áreas de Treinamento e Desenvolvimento. As mais comuns são:

  • Falta de engajamento: quem deveria participar dos treinamentos simplesmente não aparece ou não está mentalmente presente
  • Pouca efetividade: há dúvidas se os treinamentos geram resultados
  • Insuficiência: dificuldade de ter um portfolio atualizado, com uma sensação de estar sempre correndo atrás, mas nunca satisfazendo às demandas

Mas uma questão anterior a todas essas é: por que fazemos treinamentos?

A resposta mais óbvia é: porque precisamos que as pessoas aprendam.

E por que precisamos que as pessoas aprendam?

Porque gostaríamos que elas se comportassem de uma forma diferente. Ou que elas aplicassem um conhecimento de forma diferente. Ou que desenvolvessem uma nova visão de mundo.

Teoricamente, estas transformações deveriam apoiar a visão estratégica de uma organização para o presente e para o futuro.

A pergunta que faço é: basta um curso ou um treinamento para que estas mudanças de comportamento ou visão de mundo aconteçam? Geralmente, não.

O que é aprender?

Aprender é muito mais do fazer cursos e treinamentos. A aprendizagem é biológica, é parte da nossa natureza e é anterior à educação formal.

A educação formal foi criada para, em teoria, otimizar o aprendizado. O formato de sala de aula (e seus derivados virtuais) que conhecemos hoje se desenvolveu como produto da revolução industrial. Mas será que a educação formal é mesmo a única e a melhor forma de aprender em todas as ocasiões? Precisamos necessariamente de uma sala de aula para aprender?

No vídeo abaixo, Anitta conta um pouco de seu processo para aprender inglês. Ela certamente teve professores, mas também se apoiou em outros recursos informais e espontâneos.

Em outras palavras, o aprendizado real inevitavelmente se dá não só com cursos e treinamentos, mas com uma variedade de fontes e interações. Mesmo quando fazemos um bom curso, para aprender de fato, precisamos experimentar novas práticas, conversar com outras pessoas, consultar outras fontes adicionais de conhecimento etc.

De forma alguma, não estou dizendo que a educação formal não é importante. Não tenho dúvidas de que é! (Eu mesma adoro um bom curso e estou fazendo mestrado). Meu ponto é de que ela não é suficiente para a gente aprender.

O vídeo abaixo mostra com clareza que não basta ter acesso e conhecer uma informação para aprendê-la. A servidora pública da saúde diz: “Hoje, comece a trabalhar para não tocar seu rosto — porque uma das principais formas de propagação dos vírus é quando você toca sua própria boca, nariz ou olhos”, disse Cody. Mas o que ela faz em seguida?

O que este meme nos revela sobre comportamento humano e aprendizagem?

Sara Cody sabe exatamente o que deve fazer. Ela conhece a teoria. Um treinamento tradicional pode transmitir essa informação para ela. Mas de que serve, se não há uma mudança prática no comportamento? Saber é diferente de sentir, já disse o neurocientista António Damásio.

Não somos computadores, que aprendem fazendo download de informações.

Ter contato com uma informação não é suficiente para aprendê-la

Então, como aprendemos?

Se queremos chegar à causa raiz de por que treinamentos não são suficientes para aprender, precisamos pensar: como as pessoas aprendem de fato?

O que você entende da frase abaixo?

“Uma coleção de folhas de papel, impressas ou não, cortadas, dobradas e reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola, costura etc., formando um volume que se recobre com capa resistente”

Você sabe do que estou falando?

Talvez você precise ler mais de uma vez para entender. Esta é a definição de livro no dicionário Houaiss. Será que, se você nunca tivesse visto um livro na sua vida, você conseguiria entender o que é, como é e para que serve um livro?

Acredito que não.

No entanto, muitos treinamentos e palestras começam assim: com uma definição que ninguém consegue captar muito bem do que se trata.

Não aprendemos o que é um livro pelo dicionário!

Quando você pensa em um livro, qual é a primeira palavra que vem à sua mente? Isso muda bastante de pessoa para pessoa, dependendo de sua experiência de vida. As respostas variam: desde referências físicas, como “capa”, até utilitárias, como “conhecimento”, ou emocionais, como “calma” ou “animação”.

Se não aprendemos pelo dicionário, então como aprendemos o que é um livro (e qualquer outro conceito ou palavra)?

Teoria da Aprendizagem Estatística

A teoria da aprendizagem estatística, corroborada por neurocientistas como Lisa Feldman Barrett e David Eagleman, diz que aprendemos à medida que nosso cérebro reconhece padrões no mundo.

Como assim?

Pense num bebê recém-nascido. Ele nunca viu um livro. Ele nem sabe que aquele é um objeto que merece sua atenção. Mas estão seu cuidador diz a palavra livro e está com um por perto. Busca direcionar o olhar do bebê para aquele objeto. E faz isso várias vezes, ao longo de anos. Não só o cuidador, mas, posteriormente, outras pessoas e imagens se referem a livros àquela criança que está se desenvolvendo.

Assim, com regularidade de experiências, o bebê, a criança e, depois, o adulto, vão construindo padrões que permitem identificar o que é um livro.

​Mas, lembre-se, não somos computadores, nem máquinas.

Há algo mais importante nesta definição de padrões que vão ficando gravados no nosso cérebro.

Nosso corpo não desliga. Usamos o tempo todo exterocepção e interocepção em nosso processo de aprendizado. Mas o que é isso?

Exterocepção: nossos sentidos

Nossos sentidos não desligam. Percebemos o livro não apenas com a visão, mas também com o tato, com os sons que se repetem (por exemplo, a voz da mãe), com os cheiros… Isso é a exterocepção.

Interocepção: nossos movimentos internos

Além disso, temos a interocepção. É o que acontece internamente no nosso corpo e move nossos sentimentos. Coração batendo. Pressão sanguínea. Frio na barriga. Hormônios se alterando.

Os padrões que encontramos no mundo envolvem tanto interocepção quanto exterocepção.

​Ou seja, você não aprendeu a imensa maioria dos seus conceitos e palavras apenas lendo um dicionário. Na maioria das vezes, sequer consultou um.

Foram suas vivências que construíram sentido para tudo que você conhece. Vivências de todo tipo: em primeira mão, por meio de histórias contadas, de filmes, livros, fotos, desenhos etc. etc. etc.

E todas essas experiências estão sempre acompanhadas de contextos e sentimentos, em que prevalecem alguns padrões.

Quando aprendemos o que é um livro, construímos o padrão do conceito “livro” incluindo incluindo aquilo que chega pelos sentidos e pelos sentimentos a cada experiência que temos com livros.

Seu corpo não desliga quando você aprende. Você não para de sentir. O sentimento acompanha os padrões encontrados que dão sentido às palavras.

Portanto, todas as nossas palavras e conceitos carregam afetividades e nossas histórias.

Assim, aprendemos aquilo que nos importa. E o que nos importa não é necessariamente racional, mas sim afetivo, ou seja, o que nos afeta emocionalmente.

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