Repetição Sim, Tédio Não
Quando era criança, estudei um pouco de piano. Meu pai é músico e fez que questão que nós aprendêssemos algum instrumento (confesso que comigo não deu muito certo).
Quem toca, sabe: para se desenvolver, fazer aulas não é suficiente. É preciso praticar com frequência. Minha avó, que era a dona do piano, costumava me dizer em portunhol (não sei por quê): “repita hasta que lo aprenda”.
Repetir faz parte do processo de aprendizagem. Há poucos que discordam disso. Mas não é tão simples quanto parece. Afinal, apenas repetir uma informação pode ser muito chato ou até mesmo improdutivo: sabe aquela palavra em inglês que você já procurou o significado mil vezes mas, quando se depara com ela, precisa buscar de novo?
Se você atua na área de aprendizagem, talvez já tenha ouvido falar em “spaced learning” ou na eficiência do uso de flashcards. Pesquisas mostram que estas técnicas de repetição de fato funcionam e ajudam na memorização. Mas será que são tão fáceis de ser aplicadas?
Afinal, qual é o papel e o poder da repetição?
Pensando nesta questão, comecei a pesquisar sobre o assunto. E encontrei um universo muito mais amplo do que imaginava. O que vem à mente das pessoas quando pensam nesta palavra revela como ela abrange percepções bem distintas. Veja os comentários deste post no Facebook.
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Aparentemente, nem todas as perspectivas sobre repetição estão relacionadas à aprendizagem, mas, de alguma forma, ela está presente em diversos campos de estudo. Seja qual for o objetivo, no fim das contas, estamos falando do ser humano.
A ideia deste artigo é compartilhar algumas das referências e curiosidades que encontrei. Como acabou ficando mais extenso do que eu imaginava, dividi em 5 partes.
Tédio x Emoção
Spaced Learning
Quando a repetição é um dengo
Manipulação
Prática Deliberada
Repetição e Religião e Ritual e Música…
Vamos lá!
Tédio x Emoção
Em 1885, um cientista alemão, Hermann Ebbinghaus, pediu que algumas pessoas memorizassem grupos de três letras sem sentido. Depois, acompanhou a taxa de lembrança destas “sílabas” em certos intervalos de tempo. O resultado está no gráfico abaixo, um desastre!
No mundo anglo-saxão, é muito comum que se use a curva de esquecimento de Ebbinghaus para justificar a necessidade de repetição para consolidar o aprendizado.
Só que há um porém. A pesquisa de Ebbinghaus trabalha com a memorização de três letras SEM SENTIDO (Nick Shackleton-Jones conta essa história magistralmente no livro How People Learn). O que isso revela? Qual é a relação afetiva que alguém tem com este “conteúdo”?
Se considerarmos que toda memória é afetiva (conceito que expliquei neste artigo), emoções são a matéria-prima da memória. Portanto, a nossa capacidade de decorar três letras non-sense seria naturalmente reduzida.
A repetição pode ser um “remédio” para permitir a memorização. Entretanto, com ela, corremos o risco de criar tédio (pense num adulto assistindo Teletubbies). E, se realmente a premissa de que precisamos de emoção para aprender for verdadeira, o tédio é o pior inimigo da aprendizagem.
Mas, e se, em vez de letras aleatórias, fossem histórias? Será que a curva seria a mesma? Provavelmente, não.
Uma outra pesquisa demonstrou que listas de palavras transformadas narrativas são 7x mais lembradas do que informações sem contexto.
Ou, pensando de outra forma, incontáveis atores já decoraram milhares de palavras num texto de Shakespeare. Se fossem palavras aleatórias e sem sentido, dificilmente teriam a mesma capacidade de lembrar.
Então, isso significa que a repetição é desnecessária quando ouvimos histórias? Não é o que a prática e as pesquisas mostram.
Spaced Learning
Pense em uma história marcante e emocionante da sua vida. Você deve lembrar muito bem dela. Agora, responda, quantas vezes você já contou para alguém este acontecimento? Imagino que, pelo menos, um punhado de vezes.
Ao criar uma narrativa e falar a respeito de suas impressões sobre os fatos, você mantém a história viva na sua mente. É o chamado “ensaio elaborativo”. Não deixa de ser uma forma de repetição.
De qualquer forma, que fique claro, o fato de ser uma narrativa embrenhada de emoção facilita bastante o processo.
Independentemente disso, centenas de estudos demonstram que a chance de o aprendizado se consolidar com repetições espaçadas é muito maior do que se você entrar em contato de uma só vez com uma quantidade massiva de informação.
O grande problema é que repetições podem ser simplesmente chatas.
Podem ser! Mas nem sempre são. Quer ver?
Quando a repetição é um dengo
Meu marido é fã de rever séries. No ano passado, ele estava revendo Mad Men, uma das melhores de todos os tempos. E justamente naquele período me deparei com esta matéria: uma pesquisa demonstra que rever nossos programas favoritos traz a mesma satisfação de reler livros que gostamos ou visitar locais com frequência.
A familiaridade gera conforto. E, além disso, percebemos detalhes e perspectivas que não conseguimos ver da primeira vez.
Agora pense em campanhas de publicidade. A repetição é usada para manter a marca ou o produto na sua mente. Se a propaganda for muito chata ou mal feita, a repetição pode causar um efeito contrário ao que se propõe: irritação ou fuga!
Mas o oposto são campanhas como, por exemplo, o vídeo do ET voltando para visitar Elliot e sua família. Ou em propagandas que você ainda se lembra, mil anos depois (como o primeiro sutiã, que a gente nunca…). Não é um martírio revê-las. Na verdade, elas são um conforto, quase um dengo.
Por quê? Porque a essência da publicidade bem feita é mexer com nossas emoções e sentimentos. Nós aceitamos, às vezes até queremos, repetir aquilo que nos importa, nos emociona, nos toca.
Mas, como todos sabemos, a repetição na propaganda nem sempre é usada com a melhor das finalidades…
Manipulação
A gente não esquece dos detalhes de momentos muitos marcantes de nossas vidas, certo? Imagine um morador de Nova York que estava em Manhattan durante os ataques de 11 de setembro. Com certeza, é vívida a lembrança de cada momento daquele dia!
Ou não.
Uma pesquisa apresentada neste documentário do Netflix mostra que grande parte das pessoas realmente lembra de onde estava neste dia. Só que há evidências de que boa parte dos detalhes — o que viram e mesmo com quem conversaram — são simplesmente falsos.
Com técnicas sugestivas de recuperação de memória, outra pesquisa conseguiu, após três encontros, induzir 70% dos participantes a criarem falsas memórias autobiográficas de terem cometido um crime.
Isso mostra que, sim, somos sugestionáveis. E a repetição tem um papel importante na formação de falsas memórias. “Uma mentira repetida mil vezes se torna verdade”, diz a frase atribuída ao ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels.
Em seu best-seller Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar, Daniel Kahneman diz que “uma maneira confiável de fazer as pessoas acreditar em falsidades é a repetição frequente, porque a
familiaridade não é facilmente distinguível da verdade.”
Ele cita uma pesquisa do psicólogo Robert Zajonc, que publicou em um jornal, durante vários dias, algumas palavras supostamente em turco. As “palavras” variaram em frequência.
Quando a série de anúncios terminou, os pesquisadores perguntaram a um grupo de leitores se cada uma das palavras significava algo ‘bom’ ou ‘ruim’. Os resultados foram contundentes: as palavras publicadas com mais frequência foram classificados de maneira muito mais positiva do que as outras.
Zajonc chamou isso de efeito de mera exposição.
A descoberta foi confirmada posteriormente em muitas experiências, usando ideogramas chineses, rostos e polígonos de forma aleatória. Para o efeito de mera exposição, basta familiaridade, não é preciso ter consciência da repetição.
Ok, mas este tipo de reconhecimento e aprendizado acontece com repetições não intencionais, ou seja, não é o aprendiz que decide. É uma exposição passiva, bem diferente daquele estudo de piano do começo do artigo, em que minha avó pedia “repita hasta que lo aprenda!”
O que nos leva pro próximo item!
Prática Deliberada
Meu pai é um grande violinista. Ele começou a estudar com 5 anos e até hoje pratica algumas horas por dia. Quando ele está estudando uma peça, para quem está ouvindo, parece bem maçante: ele repete o mesmo trecho de novo e de novo.
“Como você faz para a repetição não ser chata, pai?”
“Sempre tenho um objetivo, algo que quero melhorar na minha performance. Mentalmente, busco evoluir em alguma coisa: uma ideia, um fraseado. Nunca é exatamente a mesma coisa. Não é uma repetição mecânica.”
Meu pai basicamente descreveu o que os especialistas chamam de “prática deliberada”.
A ideia é, justamente, que a prática que leva ao expertise não é uma simples repetição. Ela precisa ter um propósito e ser sistemática. Foco e concentração são fundamentais.
Não tem jeito. Tornar-se um expert é um processo lento. Um dos motivos é que você não precisa dominar só uma habilidade, mas um conjunto de “mini-habilidades”. Ao treinar, você estabelece pequenos objetivos e vai melhorando sua prática para alcançá-los.
Falando assim, parece fácil. Mas é preciso persistência, motivação e muito cuidado para não cair no automático. Imagine se, em vez de melhorar, você simplesmente repetir um trecho desafinado. Você fixa seu erro.
Por isso, quando se está aprendendo alguma coisa, o feedback também é parte essencial do processo. Um bom professor pode orientar para as melhorias, os mini-objetivos, na medida certa: que não sejam impossíveis e frustrantes, nem fáceis demais e desestimulantes.
Repetição e Religião e Ritual e Música…
Por incrível que pareça, o tema da repetição poderia ir muito mais longe. Mas vou parar por aqui, porque este artigo já ficou mais longo do que pretendia.
Quando o assunto é aprendizagem, o ponto que fica é: sim, repetição é importante, mas não, ela não pode cair na chatice e no tédio. Parece contraditório, mas se há paixão e emoção envolvidos é possível.
Um grande problema na educação como conhecemos hoje é que ela, muitas vezes, nos obriga a receber informações que não nos interessam e, geralmente, não se preocupa em despertar nossa vontade de saber mais.
É aí que nós, que atuamos em aprendizagem corporativa, temos muito a aprender com quem entende de comunicação e emoção. Pois é, com publicitários e profissionais do entretenimento.
Mas isso é assunto para um outro artigo.